Em um vídeo divulgado nas redes sociais, a prefeita de Balneário Camboriú, Juliana Pavan, anunciou que, “a partir de agora”, pessoas em situação de rua e dependência química poderão ser internadas de forma voluntária ou compulsória no município. Segundo ela, a medida seria resultado de um acordo recém-assinado com o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), que encerraria um processo judicial que impedia a atuação da abordagem social. O vídeo, no entanto, gerou controvérsia ao simplificar temas juridicamente complexos e tratar medidas excepcionais como se fossem soluções amplamente autorizadas.
A reportagem do Click Camboriú analisou minuciosamente as declarações da prefeita, o conteúdo do termo de acordo judicial assinado no dia 19 de maio de 2025, e os esclarecimentos posteriores emitidos pelo próprio Ministério Público.
Juliana Pavan anunciou a retomada da internação compulsória em BC como se fosse conquista de governo. Mas o MP foi claro: remoções forçadas seguem proibidas e o acordo apenas reforça os limites legais. O discurso não bate com a realidade jurídica. pic.twitter.com/sqEdZNmEbE
— Click Camboriú (@ClickCamboriu) May 22, 2025
O contexto: da proibição à tentativa de regulamentação
O vídeo da prefeita vem na esteira de um litígio judicial iniciado em 2023, quando o MPSC obteve liminar de segunda instância proibindo o município de realizar condução forçada de pessoas em situação de rua para a chamada “Clínica Social”. A decisão também vetava o uso da Guarda Municipal armada nas abordagens, exceto para a proteção de servidores. A medida foi baseada em denúncias e imagens que apontavam o uso de algemas, remoções forçadas no período noturno e práticas consideradas pelo Judiciário como “higienização social”.
Na ocasião, o desembargador Helio do Valle Pereira classificou a política da prefeitura como uma tentativa de “esconder os pobres”, e equiparou os atos a uma forma de “extermínio simbólico”, disfarçado de ação assistencial.
O novo acordo judicial firmado em 2025 põe fim ao processo movido pelo MP, mas com cláusulas que não flexibilizam os limites constitucionais — ao contrário, os reafirmam.
O que diz a prefeita: anúncio de retomada com tom triunfante
No vídeo divulgado após a assinatura do acordo, Juliana Pavan afirma que “a partir de agora o dependente químico de rua poderá ser internado, voluntário ou involuntariamente”. Em seguida, diz que a internação compulsória “não é brincadeira, nem solução fácil, mas uma medida drástica para casos extremos”, e que terá acompanhamento técnico e será amparada por uma lei municipal que será enviada à Câmara.
Segundo a prefeita, o acordo representa o encerramento de um processo judicial contra o município por práticas anteriores ilegais e permitiria a intensificação do trabalho de abordagem social. Ela também afirma que, além da internação, o termo prevê medidas de reinserção social e capacitação das equipes envolvidas.
O que diz o Ministério Público: sem remoção forçada, sem banalização da internação
Após a repercussão do vídeo, o MPSC reforçou que o acordo não autoriza remoções forçadas nem amplia as possibilidades legais de internação. A internação compulsória, conforme destacado pelo MP, continua sendo uma medida de exceção, determinada exclusivamente por ordem judicial, após a comprovação por laudos técnicos de que não há alternativa ambulatorial viável.
“A remoção compulsória de qualquer pessoa é vedada pela Constituição Federal e pelo STF”, enfatizou o MP. Ainda segundo o órgão, o acordo tem como objetivo a implementação de uma política pública estruturada, que até então nunca havia sido devidamente executada pelo município. A prioridade continua sendo o atendimento ambulatorial e comunitário, com respeito à dignidade humana e aos direitos individuais.
O que diz o acordo
O termo assinado entre o MP e o município, que tem valor de título executivo judicial, estabelece 8 cláusulas principais e diversos prazos de implementação. Entre os pontos mais relevantes, estão:
- Capacitação técnica contínua para equipes de abordagem, com foco em atendimento humanizado;
- Proibição de remoção compulsória;
- Restrições às internações, que só podem ocorrer conforme a lei: voluntária, involuntária (com pedido de familiar ou responsável e laudo médico) ou compulsória (exclusivamente com decisão judicial);
- Aquisição de 20 vagas hospitalares para internação, uma vez que o município atualmente não possui nenhuma;
- Ampliação da Casa de Passagem e ações voltadas à reinserção familiar e profissional;
- Multas pesadas em caso de descumprimento dos prazos ou das condições pactuadas.
O acordo não autoriza o município a executar, por si só, internações compulsórias — apenas a dar suporte e estrutura para que isso ocorra quando for determinado judicialmente.
O que está em jogo: discurso político x limites legais
Embora a prefeita cite o processo judicial e mencione que o acordo resolve um “impasse na atuação da abordagem social”, sua fala passa uma ideia de liberação ou novidade jurídica, o que não condiz com os termos do acordo. A legislação sobre internações psiquiátricas — Lei nº 10.216/2001 — não foi alterada, e o acordo não cria qualquer autorização inédita. O que muda é a formalização de uma política pública estruturada, com cláusulas restritivas e foco na legalidade.
Ao anunciar que enviará à Câmara uma lei para regulamentar a internação compulsória no município, a prefeita também avança sobre um tema sensível. A competência legislativa sobre esse tema é majoritariamente federal, e qualquer tentativa de flexibilização por lei municipal poderá ser judicialmente questionada por violar o pacto federativo e os direitos fundamentais.
Conclusão: política pública ou marketing político?
Embora o acordo judicial represente um avanço na formalização de políticas públicas para pessoas em situação de rua, a forma como ele foi anunciado pela prefeita Juliana Pavan soou mais como uma peça de marketing político do que como uma comunicação institucional precisa. Ao tratar a internação compulsória como uma conquista recente e vinculá-la à atuação do seu governo, a prefeita desconsidera — ou omite — que os mecanismos de internação já existiam na legislação federal e continuam cercados por limites constitucionais inegociáveis.
O Ministério Público, por sua vez, foi enfático ao reafirmar que não há autorização para remoções forçadas e que qualquer internação compulsória depende de decisão judicial e de laudos técnicos, sendo sempre uma última medida. O acordo não abre margem para interpretações amplificadas — ao contrário, ele reforça os freios legais que buscam evitar abusos já denunciados e judicializados no passado recente da cidade.
A retórica adotada pela prefeita pode até gerar engajamento e sensação de controle, mas ignora que o verdadeiro conteúdo do acordo impõe mais limites do que liberações.