A Prefeitura de Balneário Camboriú anunciou a abertura da licitação para a implementação da chamada “Smart BC Muralha Digital”, um sistema de videomonitoramento urbano que promete revolucionar a segurança pública local. Com investimento máximo previsto de R$ 1,9 milhão, o projeto inclui câmeras com reconhecimento facial, leitura de placas veiculares e inteligência analítica capaz de identificar comportamentos suspeitos.
No entanto, apesar da narrativa institucional sobre modernização e segurança, a proposta levanta uma série de questionamentos que vão desde riscos à privacidade dos cidadãos, passando por possíveis vieses discriminatórios, até a falta de transparência nos custos operacionais e de manutenção, comuns nesse tipo de sistema.
Riscos à privacidade e brechas na LGPD
A coleta e o tratamento de dados biométricos, como o reconhecimento facial, estão diretamente inseridos na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). No entanto, juristas e especialistas apontam que o uso dessas tecnologias na segurança pública ainda opera em uma zona cinzenta legal, sem regulamentação específica no Brasil.
De acordo com estudos do InternetLab, publicados na revista Internet & Sociedade, a legislação brasileira ainda não oferece parâmetros claros sobre como órgãos públicos devem lidar com dados sensíveis no âmbito da segurança. “Falta uma definição precisa sobre limites, garantias, supervisão e consentimento na aplicação dessas tecnologias, o que pode abrir brechas para abusos e violações de direitos civis”.
Racismo algorítmico: máquinas não são neutras
Outro alerta vem do campo dos direitos humanos. Pesquisas acadêmicas, como a desenvolvida pelo projeto Panóptico e divulgada na Gama Revista, mostram que os sistemas de reconhecimento facial apresentam taxas significativamente maiores de erro quando se trata de pessoas negras, pardas e indígenas .
“Esses sistemas foram treinados com bases de dados majoritariamente compostas por rostos brancos, o que faz com que haja uma distorção na identificação quando aplicados em contextos diversos como o Brasil”, explica a pesquisadora Thallita Lima, especialista no tema. A consequência prática é alarmante: prisões injustas, constrangimentos e reforço da seletividade penal, que já afeta desproporcionalmente a população negra no país.
Custo milionário, operação cara e pouco transparente
Além das questões éticas e legais, a adoção desse tipo de tecnologia carrega um fator frequentemente omitido nos anúncios oficiais: o alto custo de operação, manutenção e atualização dos sistemas.
Levantamentos feitos por pesquisadores da Revista FT Ciências Sociais Aplicadas revelam que contratos de reconhecimento facial são, via de regra, contratos especializados, de difícil concorrência, de valores elevados e com manutenção onerosa e contínua.
O edital da “Muralha Digital” de Balneário Camboriú prevê um investimento inicial de até R$ 1,9 milhão. Contudo, não há informações públicas claras sobre os custos recorrentes desse sistema, que incluem licenciamento de software, atualizações de banco de dados, manutenção de hardware e treinamento contínuo da equipe.
“Seja no Brasil, seja em países europeus que já estão revertendo o uso dessa tecnologia, o debate que se impõe é: qual o real custo-benefício disso? E quem fiscaliza?”, questiona um trecho do estudo.
Cenário internacional: removendo o que aqui se instala
Enquanto Balneário Camboriú avança na implantação, cidades da Europa e dos Estados Unidos estão em movimento oposto. Diversos países vêm restringindo ou até proibindo o uso de reconhecimento facial em espaços públicos, após constatarem que os riscos à privacidade, à liberdade individual e aos direitos civis são maiores do que os supostos benefícios.
Na França, no Reino Unido e em algumas cidades norte-americanas, o uso de câmeras com reconhecimento facial em espaços públicos já foi limitado ou banido, especialmente após comprovações de falhas, discriminação racial e vigilância excessiva da população.
E quem vigia os vigilantes?
Embora o discurso oficial venda a “Muralha Digital” como avanço tecnológico, o debate que se impõe à sociedade de Balneário Camboriú é mais profundo: a quem serve essa vigilância? Qual a garantia de que essa tecnologia será usada dentro dos limites democráticos? Quem fiscaliza o poder de quem vigia?
O município segue sem apresentar, até o momento, qualquer estudo de impacto sobre privacidade, nem consultas públicas que envolvam a sociedade civil, advogados, organizações de direitos humanos ou especialistas em proteção de dados.
Diante de experiências internacionais, de estudos que apontam erros algorítmicos e de um custo que ultrapassa os milhões, o anúncio da Muralha Digital pode ser mais um reflexo de uma aposta perigosa no controle da sociedade por meio da tecnologia, sem que estejam garantidas as contrapartidas mínimas de ética, transparência e respeito aos direitos fundamentais.